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O mito do "gênio louco": Criatividade, inteligência e psicopatologia

“Criatividade é uma loucura divina,

um presente dos deuses” ~ Platão


Você já deve ter ouvido falar em John Nash e Vincent van Gogh. Dois gênios, cada um em sua área. Nash foi um matemático que trabalhou com teoria dos jogos, com contribuições aplicadas da biologia às ciências sociais. van Gogh foi um proeminente pintor. Suas quase mil telas em óleo, que iam de retratos a paisagens naturais, ajudaram a moldar a arte moderna.


Sem dúvida ambos eram gênios criativos, cada um a seu modo. Mas não era só isso que eles tinham em comum. John Nash passou parte de sua vida às voltas com os sofríveis tratamentos psiquiátricos de meados do século XX, basicamente tratamentos psicanalíticos que estavam surtindo pouco resultado sobre seu quadro. Nash tinha esquizofrenia. van Gogh possivelmente tinha transtorno bipolar, mas alguns acham que na verdade era esquizofrenia também.


Eles pareciam compartilhar a inteligência, a criatividade, e a psicopatologia. Mas qual a diferença entre inteligência e criatividade? Pessoas inteligentes não seriam criativas? Ou daria para alguém ser extremamente criativo sem ao mesmo tempo ser inteligente? E sobre a relação da criatividade com a psicopatologia? Nash e van Gogh tinham transtornos. Até que ponto suas criações intelectuais não seriam produto de uma mente que funciona de maneira diferente, de maneira, talvez, psicopatológica? A genialidade, então, existiria apesar ou por causa da psicopatologia?


A definição de criatividade

Para botar ordem na casa, é preciso definir exatamente o que estamos chamando de criatividade. Só assim podemos entender como isso se relaciona com outro construto psicológico, a inteligência.



A criatividade é classicamente definida como a capacidade de produzir trabalhos considerados originais e úteis em dado contexto. A criatividade poderia ser formada por uma estrutura de espectro, com pessoas com maiores ou menores níveis dos componentes dessa estrutura. Mas essa estrutura poderia ser dicotômica, “ter ou não ter”. A maioria dos estudos utilizam a visão de espectro, que parece ser mais acurada.


Mas o que isso diz sobre a relação criatividade-inteligência?


Estudos clássicos sobre isso concluíram que criatividade e inteligência eram coisas diferentes. A correlação era quase 0, ou quando existia, era bem fraca, por volta de 0,2.

Mas, análises estatísticas mais apuradas começaram a contar uma história diferente. Inteligência e criatividade começaram a ser considerados fenômenos moderadamente relacionados. Pessoas mais criativas tendiam também a ter alta inteligência. Esses estudos mostraram que criatividade e inteligência tinha correlação que poderia chegar a ser maior que 0,2.


Esses novos estudos tratam a criatividade como uma mistura de originalidade e fluência. Originalidade é o quão diferente é sua resposta, em relação à resposta de outros participantes, numa tarefa experimental que pede que você crie soluções alternativas para um problema, ou que cite sinônimos para expressões ou palavras. Fluência é a quantidade de respostas que o participante é capaz de dar.


Mas fluência e originalidade são fenômenos tão associados que a correlação entre eles era praticamente 1. É como se dois instrumentos estivessem medindo a mesma coisa, e não fenômenos diferentes. Pessoas muito originais também eram muito fluentes, digamos assim, então medir as duas coisas parecia desnecessário.


Ainda mais recentemente, criatividade parece ter encontrado uma natureza ainda mais complexa de associações. Muitos estudos identificam criatividade com pensamento divergente, ou seja, a capacidade de apresentar soluções diferentes, originais, para determinado problema. Apesar das críticas a esse modelo de medida de criatividade, essa tem sido uma medida muito usada na área.


A criatividade, como pensamento divergente, pode estar associada à inteligência fluida, especificamente. Inteligência fluida é basicamente a capacidade de raciocinar, resolver problemas de diferentes níveis de complexidade. É uma dimensão da inteligência geral que não está tão relacionada ao nível de escolaridade, sendo muito mais explicado pela herdabilidade do que por fatores ambientais.


Parece que o pensamento divergente está associado especialmente com funções executivas. Inteligência fluida e memória de trabalho são exemplos de capacidades associadas a essas funções. E parece que, de fato, quanto maior a inteligência fluida, maior a criatividade. As mesmas associações não são encontradas com relação à inteligência cristalizada, que é uma parte da inteligência mais associada ao nível educacional do que com o raciocínio propriamente dito.


Ou seja, estudos atuais parecem estar formando uma conclusão geral, a de que inteligência e criatividade são sim coisas diferentes, mas coisas que estão ao menos moderadamente interligadas. Em outras palavras, é esperado que pessoas muito inteligentes (nesse aspecto da inteligência fluida) tendam a ser pessoas também mais criativas.


Gênio apesar, ou por causa da psicopatologia



Mas vamos pensar por um segundo. Nash e van Gogh eram gênios criativos, mas gênios em áreas diferentes. Nash era matemático, van Gogh era pintor. A criatividade na maioria dos estudos científicos é tratada como pensamento divergente, original, capacidade de fazer associações inusitadas. Isso certamente se encaixa bem não só no tipo de trabalho, mas no tipo de personalidade que artistas tendem a ter. Só que artistas e matemáticos tendem a ter personalidades bem diferentes. Então, será que eles também teriam tipos diferentes de criatividade?


Primeiro, artistas e cientistas tendem a ter diferentes características de personalidade. Existe uma dimensão da personalidade chamada abertura à experiência. É basicamente a disposição em se abrir a experiências diferentes e a ideias novas. Parece que pessoas que vão para áreas científicas tendem a ter níveis mais altos de abertura intelectual do que sensorial, digamos assim. Todos nós conhecemos pessoas que gostam mais de se engajar em conversas mais filosóficas, que costumam ser racionais, analíticas, que gostam de estudar temas complexos e “cerebrais”. Outras pessoas já são mais do tipo que desejam ter muitas experiências ao longo da vida, conhecer muitos lugares, vivenciar diferentes experiências, viajar, ir a shows. O primeiro tipo de pessoa tende a pontuar mais alto na dimensão Intelecto, enquanto o segundo tipo, na dimensão Abertura.


Essa diferença é visível entre cientistas e artistas. Apesar de ambos terem altos níveis de abertura à experiência em relação à população geral, cientistas tendem a pontuar mais alto em Intelecto, e artistas, em Abertura. Estudos mostram que o sucesso em áreas científicas está muito mais associado ao nível de inteligência do que o sucesso na arte. Não por acaso, a dimensão Intelecto está muito mais ligada à inteligência do que a dimensão Abertura.

Segundo, artistas e cientistas parecem ter traços associados a diferentes formas de psicopatologias, o que os tornaria predispostos a diferentes formas de criatividade. Enquanto cientistas parecem ter maiores níveis de traços autísticos não patológicos do que a população em geral, artistas parecem ter mais traços esquizotípicos. É bom ressaltar que esses traços não são psicopatologias. Eles são traços que variam na população em geral, mas em formas subclínicas, não patológicas. Ter altos traços autísticos não significa ser autista, no sentido de ter um transtorno do espectro autista.


Pessoas altas nesses traços autísticos tendem a ter altos níveis de sistematização. Isso significa que elas são mais analíticas. Não por acaso, cientistas tendem a ter mais desses traços do que as outras pessoas. Ser bom em ciência requer a capacidade de ser analítico, criterioso, notar padrões, gostar de pensamento abstrato. Isso pode significar que cientistas e pessoas altas em características autísticas podem ser criativas, mas dentro do escopo de atividades que envolve sistematização.


Artistas, como são altos em traços esquizotípicos, tendem mais a fazer associações inusitadas entre ideias, mas de maneira menos sistemática. Artistas são mais sensoriais do que intelectuais, digamos.


A forma como cientistas e artistas vão usar sua criatividade reflete suas diferenças de personalidade.


Por exemplo, parece que altos níveis de traços autísticos estão associados a altos níveis de pensamento divergente. Mais especificamente, é o alto índice de sistematização associado a esses traços autísticos que parece se associar ao nível elevado de pensamento divergente. Ou seja, o autismo, seja em formas patológicas (ou neurodiversas) ou não, parece estar ligado à criatividade via sistematização, o que combina bastante com as habilidades requeridas na ciência.


O que esses dados estão mostrando exatamente? Quer dizer que pessoas mais criativas tendem a ter alguma psicopatologia, ou algum quadro neurológico especial?


Não exatamente. Parece que a relação criatividade-psicopatologia segue um gráfico em formato de U invertido. Traços autísticos ou esquizotípicos em níveis baixos parecem aumentar a criatividade, mas chega um ponto em que se o nível desses traços aumentar, a criatividade começa a diminuir.


O mito do gênio louco



É muito difundida a imagem popular do gênio problemático. Pode variar de uma pessoa irascível, até aqueles que falam coisas que ninguém entende, ou mesmo pessoas com alguma psicopatologia, e que por isso enxergariam alguma coisa inacessível a quem não compartilha da mesma condição.


O mito do gênio louco não está completamente errado. Ele só precisa ser calibrado.

Se por gênio estivermos nos referindo a pessoas altamente criativas, então evidências vêm mostrando que um pouco de psicopatologia pode ser fundamental. Por exemplo, os mesmos genes associados a altos níveis de criatividade estão também ligados ao desenvolvimento de esquizofrenia e transtorno bipolar. Níveis moderados de traços esquizotípicos e autísticos também parecem favorecer a criatividade.



Como inteligência é um traço que têm se mostrado positivamente correlacionado com a criatividade, é possível generalizar certas conclusões a respeito da inteligência para a criatividade. Por exemplo, cientistas, matemáticos e engenheiros tendem a ser mais altos em traços autísticos do que a população em geral. De fato, suspeita-se que muitos cientistas famosos e singulares tenham tido síndrome de Asperger, o que hoje é considerado uma forma de autismo leve, como Albert Einstein, Alan Turing, artistas sistemáticos como Michelangelo e filósofos sistemáticos como Ludwig Wittgenstein e Jeremy Bentham. De fato, há motivos sólidos para inferir que o autismo seja uma espécie de preço que a espécie pagou pela seleção de níveis altos de inteligência ao longo da evolução.


Ou seja, existem evidências mostrando relação entre inteligência, criatividade e psicopatologia, sendo esta última tanto em níveis moderados, quanto em níveis altos que configuram a psicopatologia em si. Isso significa que de fato existe relação, mesmo que sutil.

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